Então não devemos mais transfundir? Saiba como e por que realizar cirurgias sem – ou com pouco – sangue

“Então não devemos mais transfundir sangue? O que devemos é fazer a gestão correta da transfusão de sangue”, Dr. Enis Donizetti Silva

O movimento bloodless surgery (traduzido literalmente: cirurgia sem sangue), que começou nos anos 1980, nos Estados Unidos, principalmente por causa do HIV, ainda não se estabeleceu totalmente no Brasil, embora sejam conhecidos os efeitos adversos da transfusão sanguínea. “Hoje sabemos, por meio de estudos, que bolsas de sangue que podem ‘salvar vidas’, na verdade, pioram a sobrevida do paciente, aumentam o período de internação e as complicações”, declarou o médico anestesista Dr. Enis Donizetti Silva, coordenador do Serviço de Anestesia da Sociedade Beneficente de Senhoras do Hospital Sírio-Libanês, na palestra “Condutas e Tecnologias para Realizar Cirurgias de Grande Porte sem Transfusão de Sangue” no 8º AnestEdu. “Então não devemos mais transfundir sangue? O que devemos é fazer a gestão correta da transfusão de sangue. Mais uma vez, a palavra é gestão.”

Segundo o Dr. Donizetti Silva, as faculdades de Medicina ainda não ensinam essa gestão, que é o mais complexo, mas apenas a transfundir. Os alunos aprendem que se o paciente está anêmico, se parece que ele vai sangrar ou se está tomando anticoagulante oral, devem transfundir, devem dar plasma, transfundir fator de coagulação. “E vamos fazendo as coisas assim, no automático.”

Em breve, publicaremos os vídeos das palestras do 8º AnestEdu. Saiba mais aqui sobre a programação do 8º AnestEdu

O conselho dado pelo médico anestesista é o seguinte: “Quando pensar em fazer uma transfusão, tenha em mente que você está fazendo um transplante”. Ele explica que hoje se sabem que os fenômenos que desencadeiam a necessidade da transfusão não são o que se imaginavam no passado, mas grande parte do sistema de saúde continua atuando como se fossem. E que, em vez de transfundir, boa parte desses fenômenos podem ser prevenidos e resolvidos com outras terapias, medicamentos e tecnologia. “Por exemplo, trauma. Trauma é igual a sangue? Depende. Boa parte das soluções está na farmácia. Hoje podemos falar de desenvolver e implementar um programa de gestão de sangue perioperatório, evitar transfusão alogênica sempre que possível e, quando necessário, transfundir tão pouco quanto possível.

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Cirurgia sem sangue e resultados

Um estudo publicado na revista Transfusion, em 2017, mostrou os resultados da implementação de um programa de gestão de sangue voltada ao paciente em todo o sistema de saúde australiano. O estudo retrospectivo avaliou 605.046 pacientes adultos internados em quatro grandes hospitais terciários entre julho de 2008 e junho de 2014. Com a implementação do programa, as transfusões de unidades de hemácias, plasma fresco congelado e plaquetas diminuíram 41%. Diminuíram também os níveis médios de hemoglobina pré-transfusional de 7,9 g/dL para 7,3 g/dL e as internações com anemia eletiva de 20,8% para 14,4%. Os resultados foram redução ajustada no risco de mortalidade hospitalar, no tempo de internação, na taxa de infecção hospitalar e na incidência de infarto agudo do miocárdio. A economia foi de mais de 18 milhões de dólares.

O Dr. Enis Donizetti Silva lembrou ainda de outro estudo, que demonstrou que nos EUA o valor de uma bolsa de sangue variava de 70 a 750 dólares. Segundo ele, no Brasil não temos esses números, mas devem chegar a 1.200, 1.300 reais a unidade. “O uso de sangue aumenta custos e, se não for feito de maneira adequada, aumenta custos sem gerar eficiência. Para ter resultado, tem que ter pertinência”, disse.

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Técnicas para cirurgia sem sangue

O Dr. Enis Donizetti Silva trouxe ao 8º AnestEdu um checklist desenvolvido por um grupo que trabalhou na Sociedade Europeia de Anestesia com o objetivo de oferecer algo simplificado, e que trazemos aqui traduzido:

Checklist para Gestão de Sangue Voltada ao Paciente Adulto

Pré-operatório

  • Risco de transfusão > 10%?
  • Investigar, diagnosticar e tratar a anemia
  • Descontinuar o anticoagulante?
  • Descontinuar as drogas antiplaquetárias?
  • Crossmatch de hemácias

Intraoperatório

  • Restringir os gatilhos transfusionais
  • Normotermia
  • Diagnóstico da coagulação (pH > 7,2 / Ca2⁺ > 1,2)
  • Point-of-Care: Rotem, Multiplate
  • Ácido tranexâmico, desmopressina
  • Cell Saver
  • Normovolemia
  • Otimizar débito cardíaco
  • Diminuir coletas de sangue
  • Cirurgia cardíaca: hemoconcentração? Pós-filtração?

Pós-operatório

  • Restringir os gatilhos transfusionais
  • Normotermia
  • Diagnóstico da coagulação (pH > 7,2 / Ca2⁺ > 1,2)
  • Cell Saver
  • Ácido tranexâmico, desmopressina
  • Normovolemia
  • Otimizar débito cardíaco
  • Diminuir a frequência e o volume das coletas de sangue para exames laboratoriais

Em relação a esse checklist, sobre o diagnóstico de coagulopatia, o Dr. Donizetti Silva lembrou que um bom inquérito, ou seja, doze perguntas ao paciente sobre a história de coagulação, são mais eficazes (92% de assertividade) do que um exame laboratorial (66% de especificidade e sensibilidade). “E é mais barato do que pedir tp, ttpa, fibrinogênio.”

Ele alertou, porém, que a tecnologia, quando usada corretamente, é grande aliada do paciente e da instituição, e citou principalmente o Rotem (tromboelastograma). “Você faz não só o diagnóstico, como trata aquela amostra de sangue, que pode ser ínfima. Por exemplo, se eu acho que é antifibrinolítico, pingo antifibrinolítico lá dentro; se acho que é plasma fresco, pingo plasma fresco numa quantidade conhecida. Trato aquela amostra, simulo a condição antes de fazer no paciente”, disse.

Segundo o Dr. Donizetti Silva, com o tromboelastograma, a cada dólar investido, a taxa de retorno é de cerca de 5 a 6 dólares. Ele contou que o Hospital Sírio-Libanês adquiriu o Rotem há dois anos e passou de uma média de uso, em transplantes de fígado, de 7,5 unidades de plasma fresco para, atualmente, nenhuma unidade: “Eu consigo convencer o gestor do meu hospital a colocar algo assim? Consigo.”

Outra boa prática daquele hospital, que ele compartilhou, é que, quando uma transfusão é indicada no centro cirúrgico, alguém do banco de sangue entra em contato para perguntar o motivo. “Não irão se negar a enviar a unidade, mas dependendo da situação um dos hemoterapeutas irá conversar conosco”, contou. “O resultado é que, quando precisamos justificar a conduta, despenca a indicação: cai 30, 40 até 50%.”

No site do hospital está disponível o Guia de Condutas Hemoterápicas.

O Dr. Donizetti Silva citou outras tecnologias e medicamentos que hoje estão à disposição, como recuperação de sangue intraoperatório, antifibrinolíticos e trombopoetina.

Destacou que a fibrinólise é um fenômeno fisiológico que ocorre depois da ativação da coagulação, porém, há pacientes que exageram nessa resposta inflamatória, ou seja, na resposta fibrinolítica. Usando uma droga que controle isso, reduz-se o sangramento. Em cirurgias com grande potencial de sangramento, como cirurgias cardíacas ou de coluna, podem-se profilaticamente usar drogas antifibrinolíticas.

Já a trombocitopenia relacionada à terapia, devido à quimioterapia e radioterapia, é comum em tratamentos pediátricos contra o câncer, e a trombopoetina mimética é eficaz contra a trombocitopenia imune em crianças e também em adultos com câncer.

Anemia e cirurgias eletivas: combinação deliberadamente malsucedida

A anemia é um dos fenômenos que mais desencadeia transfusão, e quanto a isso o Dr. Enis Donizetti Silva alertou com um exemplo: muitas vezes, pacientes são encaminhados para cirurgias eletivas com 8,5 ou 9 gramas de hemoglobina e essas cirurgias não são suspensas. Para ele, primeiro, seria necessário otimizar esse paciente para depois levá-lo à cirurgia. “Se, por exemplo, operar um paciente com câncer, anêmico, aumenta a recidiva tumoral em duas a três vezes e a mortalidade, em 40%, como posso, deliberadamente, sabendo dessas informações, colocar meu paciente em uma situação dessas?”, perguntou. Nessa hora é necessário conversar com o cirurgião, o clínico, o hematologista e propor o tratamento da anemia do paciente, porque o prognóstico e o desfecho serão muito melhores do que se for submetido à cirurgia na situação vigente. “No intraoperatório, temos muitas alternativas para reduzir anemia.”

Falando em perda sanguínea do paciente internado, ele alertou sobre o exagero na coleta de sangue para exames. Lembrou que durante uma época colhia-se uma gota com a qual se podia verificar hb, sódio, potássio, cloro, cálcio ionizado, etc., a chamada química seca. Hoje, em alguns hospitais, com 2 ml, 2,5 ml de sangue se podem fazer os mesmos exames, mas há locais em que se colhem, por exemplo, 4 ml para fazer a glicemia, 4 ml para fazer sódio e potássio, mais 3 ml para fazer o hemograma e o paciente acaba perdendo 30, 40 ml de sangue a cada coleta. E as coletas são feitas de rotina, a cada manhã, quando alguns desses exames não terão resultados alterados em 48, 72 horas. “A pergunta é: por que você colhe esse exame de rotina?”, perguntou.

O Dr. Donizetti Silva lembrou também de dois dos maiores problemas relacionados à transfusão sanguínea: a Trali (sigla em inglês para Lesão Pulmonar Aguda Relacionada à Transfusão) e o suprimento irregular de sangue.

A Trali é a principal causa de mortalidade relacionada à transfusão, cuja incidência ocorre na relação de 1/500 ou 1/1.000 unidades de plaquetas transfundidas. A incidência relatada no Brasil, porém, é de 1/100.000. “Ou somos a Suíça ou não estamos reportando corretamente”, lamenta.

O brasileiro não é um doador regular de sangue. O inverno é uma época em que as doações diminuem e, segundo a Fundação Pró-Sangue, responsável pelo abastecimento de grande parte dos hospitais públicos da Grande São Paulo, os estoques estão baixos, girando em torno de 30% a 40% do ideal. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, no ano passado, mostrou que 92% dos entrevistados declararam que não haviam doado sangue nos últimos 12 meses anteriores à pesquisa.

Porém, lembrou o Dr. Enis Donizetti Silva, quando há catástrofes, há mobilização e, às vezes, desperdício. Ele contou que, quando ocorreu a tragédia da queda das Torres Gêmeas, em Nova York (2001), mais de 600 mil bolsas de sangue foram disponibilizadas pelos bancos de sangue da cidade, mas apenas 6% foram usadas. Simplesmente não foi necessário tanto sangue. “Se o suprimento de sangue é irregular e está sujeito a demandas, sob lei da oferta e da procura, melhor que seja estabelecido um modelo de cuidado e gestão”, afirmou.